um cibercordel

 

    revoluciomnibus.com  OU A POÉTICA DA LUZ DO SERTÃO

    

       ciberzine   & narrativas de james anhanguera

                     

                   Até calango pede sombra

                                                  

               uma série revoluciomnibus.com que inclui

                                                                                   

 

                 Os Sertões               Euclides da Cunha & Os Sertões

                   O triste e belo fim de Joana Imaginária & Antônio Conselheiro

 Canudos Hoje: Tendão dos Milagres X O Amuleto de Ogum   

  TRISTERESINA  

      BANGUE-BANGUE

      NA  TERRA DO SOL

 

           

           duna 

   do pôr do sol

Coriscos & Dadás Lampiões &  Marias Bonitas

  Até calango pede sombra  

 

GLAUBER ROCHA OU A POÉTICA DA LUZ DO SERTÃO NO CINEMA NOVO BRASILEIRO  

 

A INDÚSTRIA 

DA SECA

 

No Pátio dos Milagres do Padim Ciço

O triste e belo fim de Joana Imaginária & Antônio Conselheiro

INDISSECA

   índice remissivo

 

                               

                     cibercordel

         DO  MAIOR VIVEIRO CULTURAL  

                             DO BRASIL E UMA DAS REGIÕES   

                             MAIS    POBRES    DO       MUNDO 

                             HISTÓRIA       GEOGRAFIA        E

                             CULTURA    MÁGICA     MÍSTICA

                             MÍTICA              &           TRÁGICA

          

 

 

 

                  Até calango pede sombra  

   

 

   

    O Estado da Bahia tem 567 mil quilômetros quadrados. Com um litoral de 700 km de Paraíso Dantesco repleto de Beatrizes muito morenas. Com o Recôncavo Baiano, um dos berços da plantation de cana-de-açúcar, e as antigas Lavras Diamantinas, recortadas no sul do sertão baiano e a norte de Jequié e Vitória da Conquista, na fronteira com o sertão mineiro.

    O sertão da Bahia é cortado pelo rio São Francisco, que seria o Mississipi brasileiro – o grande caminho da civilização, na visão de João Ribeiro numa História do Brasil citada por Euclides da Cunha em Os Sertões – se a colonização do Brasil tivesse alguma coisa a ver com a dos EUA. Até que existem algumas ressonâncias na escravidão no regime de plantation no litoral e num certo clima de bangue-bangue, mais de um século depois, no sertão brasileiro, terra sem lei e sem ordem. Mas no interior do oeste/sudoeste baiano – aqui posto em comparação com o meio-oeste/sudeste americano - os negros não entram na composição da paisagem humana na medida em que se os vê espalhados pelas terras de origem do jazz e do blues. E de onde nem por acaso vieram as 30 míticas barcaças compradas em segunda mão que até os anos 1970 animaram as barrancas do Alto e Médio Velho Chico.

 

 

 e aí quando eles ficaram bem velhinhos esses vapores que levaram a sopa primordial de New Orleans para os blues de Saint Louis, Memphis e Chicago e para o mundo puseram o Velho Chico pindurado nas gaiola  

De Bom Jesus da Lapa a Pirapora

São cinco dias pindurado no vapor

Subindo a correnteza desse rio

São cinco dias pindurado no vapor

     Sá, Rodrix & Guarabyra - 1972

 

 

Eram cinco dias. Hoje não tem mais porque aquele trecho do rio não é mais navegável. A montante e a jusante o Velho Chico foi bastante maltratado e o volume de água caiu muito. 

   Rio de São Francisco

ao tempo e na visão de Jorge de Lima:

E dá-lhes água e dá-lhes o pão do umbuzeiro, caroás, gravatás e cajuís. Dá-lhes os peixes das parábolas, mandins, curumatás, surubins. E o gado come quipás, xiquexiques, mandacarus. E o caboclo retempera as entranhas queimadas com o refresco de jurema. E o rio desce. E volta o tempo da fartura. E o homem esquece... E floresce outra vez a alma do sertão.

 

A Oeste do São Francisco está o cerrado. Barreiras, na fronteira com Goiás, é uma das capitais brasileiras da produção de soja e algodão.

A partir de Bom Jesus da Lapa a coisa muda totalmente de figura.  

   Poucos sinais de presença humana na imensidão de terra seca e lacônica molhada quase só pelo suor das gentes do semiárido semideserto, como o cenário do western spaghetti de Sergio Leone, primo de Glauber. Ou Howard Hawks, Clint Eastwood. De todo modo sempre estrelando João Vaine, como o chamava Glauber, o crente ateu crente em poder mudar o mundo em festa trabalho e pão como o viramundo de Gilberto Gil e José Carlos Capinan naquele tempo, meados dos anos 1960.

    Lógico. Quem iria se dispor a viver voluntariamente num lugar desses?

 

    Foi com som e fúria, tendo por base a ignorância após três surpreendentes humilhações, que oito mil soldados de vários contingentes de norte a sul do país arrasaram Belo Monte, de que não se sabe nem quantos habitantes tinha ao certo, com certeza mais de dez mil, talvez 25 mil – cifra estapafúrdia para alguns historiadores (desde Euclides da Cunha). Com 5200 casas - contadas uma a uma pelo exército, segundo o cronista d'Os Sertões.

Salvador da Bahia, a Roma Negra de Roberto Rossellini, tem 365 igrejas, cantou Dorival Caymmi. Talvez só na imaginação dos soteropolitanos. Numa pesquisa informal entre amigos Jorge Amado contou sessenta e poucas no seu centro histórico. O número é só uma parte de um grande mito. Como o de Canudos.

A campanha militar contra Canudos iniciara-se um ano antes do ataque final. Os fiéis seguidores do Conselheiro, entre eles muitos jagunços, interceptaram a tropa em Uauá e com táticas de guerrilha também usadas pelos bandos de cangaço que começavam a zanzar por todo o sertão puseram-na para correr.

Conta-se que a maior cidade que Lampião avistou foi Mossoró, no Rio Grande do Norte. Observou-a de longe e logo retomou a marcha dizendo à cabroeira:

Terra com mais de uma torre não é pra cangaceiro atacá.

O Arraial de Belo Monte tinha quatro torres - duas da Igreja Velha e outras duas da Nova. Mais que uma meca num pasto fértil de crendices.

O sertão nordestino é o maior cenário literário, cinematográfico e musical brasileiro, tema de milhares de obras-primas, contando-se o populário dos cantadores e cordéis de feira, peças de dança e canções. Como disse Alceu Valença Se poesia irrigasse solo e trouxesse abundância e progresso o Nordeste seria um vastíssimo oásis.

    E uma belíssima churrascaria.

   Nós, Por Exemplo. A geração dos 1950-60 reunida em Salvador. Soteropolitanos, baianos, suíços, alemães e franceses: Tomzé, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Antônio Risério, Waly Salomão o marinheiro da lua, Álvaro Guimarães, Rogério Duarte... num terreno cultivado por Walter Smetak, Hans Joachim Koellreutter, Dorival Caymmi, Jorge Amado, Carybé da Rocha, João Gilberto, Mário Cravo e Pierre Verger.

Muita munição de uma vez só.

 

 

    Quem se aventura a ir em linha reta 500 km a Oeste de Salvador até a outra ponta da Estrada do Feijão, nas barrancas do São Francisco, tem um baque: é igual a Luanda e à periferia do Rio de Janeiro e São Paulo, onde três quarto da população são nordestino ou descendente.

    A diferença com a África é que negro aqui é uma pequena minoria e o preto da situação é pardo, sobretudo mameluco. Cafuzo às vezes. E um pouco também marrabito, que é a mistura de holandeses com cafuzo. Para as bandas da cidade de Barra, a sul, tem um quilombo chamado Vanderlei, de Van der Leyd, uma das famílias batavas que disseminaram o sangue pelas colinas de Olinda e as praias das Alagoa.

    Euclides da Cunha detém-se no final de sua narrativa sobre os "sertões do norte" na descrição de um desses espécimes raros naquelas paragens, que negociou com os expedicionários a rendição de crianças, mulheres e velhos no final da guerra de Canudos:

     

     Nessa ocasião interveio o outro prisioneiro, que até então permanecera mudo.

     Viu-se, pela primeira vez, um jagunço bem nutrido e destacando-se do tipo uniforme dos sertanejos. Chamava-se Bernabé José de Carvalho e era um chefe de segunda linha.

     Tinha o tipo flamengo, lembrando talvez, o que não é exagerada conjectura, a ascendência de holandeses que tão largos anos por aqueles territórios do norte trataram com o indígena.

     Brilhavam, varonis, os olhos azuis e grandes; o cabelo alourado revestia-lhe, basto, a cabeça chata e enérgica..

    O barro domina a paisagem de matas ralas da planície semiárida, feita de cabanas de barro cru, pau-a-pique e sapé ou tijolo e telha - net-like walls, casas de taipa

                                                             

 

    Do pó se nasce e entre o pó se vive. O clima extremamente seco e a poeira do Alto Sertão baiano ressecam os lábios e tisnam a pele curtida do matuto, o sertanejo, o homem do sertão agreste, uma das últimas fronteiras brasileiras da civilização com a natureza quase selvagem do homem. Em quase todos os aspectos muito primitiva.

    A terra é dominada pela mesma paisagem por muitas léguas ainda até a fronteira com o estado do Tocantins, onde a vegetação começa a mudar prenunciando a entrada na maior floresta tropical do planeta.

    Poucos sinais de povoamento numa imensidão de terra seca e quase ignota.

    Às margens de um braço do rio São Francisco um século depois de Canudos, Xique-Xique, nome mítico, entre os mais característicos do sertão nordestino, repousa isolada e inerte.

 

    

Daqui também se vê a grandeza do São Francisco – um braço do rio chega a ter cem metros de largura. 

 

     Rio de São Francisco e suas gentes

                      

                                                                                    Até calango pede sombra

                                              

                 

na visão histórica de Euclides da Cunha em A Terra e O Homem de Os Sertões

a partir do texto original da terceira edição de acordo com as revisões feitas pelo próprio Euclides da Cunha num exemplar que está na Academia Brasileira de Letras   

OS SERTÕES, 3ª EDIÇÃO: RIO DE JANEIRO, LAEMMERT, 1905

 

 

S. Francisco (...) foi nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira; no curso inferior, o teatro das missões, e, na região média, a terra clássica do regímen pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia

[76] extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da "Serra das Esmeraldas", que desde meados do século XVI atraíra para os flancos do Espinhaço (...) se havia apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa "Sabará-bussu" e as das "Minas de Prata" (...) as entradas sertanejas volvessem ao anelo primitivo (...) e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais forte, pelo país inteiro.

     (...) surgira na região que interfere o médio S. Francisco um notável povoamento 

[77]           FUNÇÃO HISTÓRICA DO RIO S. FRANCISCO

 o acesso fazia-se pelo S. Francisco (...) unificador étnico (...) os forasteiros, ao atingirem o âmago daquela região, raro voltavam. (...) terra, do mesmo passo exuberante e acessível, (...) a sua flora complexa e variável, (...) e o regímen pastoril ali se instalou 

[78] (...) extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século XVIII ia (...) de Minas a Goiaz, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. a maioria dos criadores opulentos que ali se formaram vinham do sul. 

           OS JAGUNÇOS: COLATERAIS PROVÁVEIS DOS PAULISTAS

ali ficaram

[79]                                                                O VAQUEIRO

O encourado

inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo (...) aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade (...) 

     Os primeiros sertanistas que a criaram, tendo suplantado em toda a linha o selvagem, depois de o dominarem escravizaram-no e captaram-no, aproveitando-lhe a índole na nova indústria que abraçavam. [a criação de gado] 

     Veio subsequentemente o cruzamento inevitável. E despontou logo uma raça de curibocas puros curibocas puros quase sem mescla de sangue africano

[80] Criaram-se numa sociedade revolta e aventurosa, sobre a terra farta; e tiveram, ampliando os seus atributos ancestrais, uma rude escola de força e coragem naqueles gerais amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a ema velocíssima (...)

     Fora longo traçar-lhes a evolução do caráter. Caldeadas a índole aventureira do colono e a impulsividade do indígena, tiveram ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos (...) e ali estão as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado ao fanatismo e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três séculos (...) sobre o local das antigas missões [cidades] ali surgiram, todas de antigas fazendas de gado. 

[81] atuais povoados sertanejos se formaram de velhas aldeias de índios (...)

(...) em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinaram à posse de uma só família, a de Garcia de Ávila (Casa da Torre) (...) 

Canhembora (cãnybora = índio fugido) e quilombolas, negros foragidos nos quilombos [se mesclavam ligeiramente]

[82] Ao terminar o século XVIII Lancastre fundou com o indígena catequizado o arraial da Barra, para atenuar as depredações de Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto, à feição da corrente do S. Francisco, sucederam-se os aldeamentos e as missões (...) no trecho dos sertões baianos mais ligados aos demais Estados do norte - em toda a orla do sertão de Canudos - se estabeleceu desde o alvorecer da nossa história um farto povoamento em que sobressaía o aborígene amalgamando-se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao ponto de dirimir a sua influência inegável.

[83] As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram-se no mesmo método. Do final do século XVIII ao nosso, em Pombal, no Cumbe, em Bom Conselho e Monte-Santo etc., perseverantes missionários, de que é modelo belíssimo Apolônio de Todi, continuaram até os nossos dias o apostolado penoso. 

população indígena, aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante.   

                                                                                                                   

                                                                                             raros mocambeiros foragidos

                                                                                                             matuto anos 2 000 

     CAUSAS FAVORÁVEIS À FORMAÇÃO MESTIÇA DOS SERTÕES DISTINGUINDO-A DOS CRUZAMENTOS NO LITORAL

Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação do autóctone. 

[entre elas] as grandes concessões das sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso feudalismo tacanho

curibocas e cafusos trigueiros

[carta régia de 1701 proibira comunicações daquelas partes dos sertões com o sul. Nem relações comerciais, as mais simples trocas de produtos. (...) Esta região ingrata (...) pora-pora-eima [do tupi lugar despovoado], estéril] (...) foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados (...) os indômitos cariris (...) A tapui-retama [região do Tapuia] misteriosa ataviara-se para o estoicismo do missionário. As suas veredas multivias e longas, retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos. [as bandeiras que a alcançavam declinavam logo buscando outras paragens] (...) a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da Fé (...) e deixavam em paz o gentio. Daí (...) predominarem (...) nas denominações geográficas (...) termos de origem tapuia [como entre muitos Chique-Chique, Jequié] (...) 

[85] médio S. Francisco

     É natural que grandes populações sertanejas, de par com as que se constituíram no médio S. Francisco, se formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas [afastadas abandonadas], evolvendo em círculo apertado durante três séculos (...), num abandono completo, de todo alheio aos nossos destinos, guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que, hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma uniformidade notável entre os que o povoam (...) o homem do sertão parece feito por um único milde (...) e os mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições, nos mesmos vícios, nas mesmas virtudes.

 

 

 A abertura em 1977 da Rodovia do Feijão, ligando por asfalto Xique-Xique a Feira de Santana e à capital da Bahia, pouco ou nenhum efeito teve sobre a sua solidão.

 

 O sol inclemente da estação muito seca, raramente encoberto por nuvens negras que parecem anunciar chuvas que nunca cairão, dá aos matutos(*) aparência de velhos muito antes do tempo.

    Aqui é fim de linha – reclama um matuto viajado e por isso mal resignado com sua falta de perspectivas enquanto com os olhos semimortos faz um travelling pela planície interminável. Terra inóspita, desoladora. Céu resplandescente. Perspectiva de harmonia e prosperidade só lá mesmo.

- Rapaz, cê num sabe o que é vivê sem um tostão nessa secura, debaixo dessa solêra que faz calango pedi sombra.

 (*)  matuto. Adj. 1. Que vive no mato, na roça. 2. Pertencente ou relativo ao, ou próprio do mato, da roça; caipira. 3. Bras., N. e N.E. Acanhado, tímido, desconfiado. 4. Dado a matutar, cismático, cogitabundo. 5. Fam. Finório, sabido, matreiro. * 6. Bras. V. caipira (1) 7. Bras. Sujeito ignorante e ingênuo.

Do mato, da roça. 

Acanhado, tímido, desconfiado, dado a matutar, cismático, cogitabundo - meditabundo. 

Finório, sabido, matreiro \  ignorante e ingênuo.

Poucos termos são tão euclidianos enquanto de significados afinal tão desconexos ou paradoxais. Oxímoro por si mesmo, substantivo próprio e antonomástico.

    

    O homem.

    A civilização ocidental chegou a estas paragens que os geógrafos não assinalavam nem como

TERRA   IGNOTA  no final dos mil e seiscentos, quando foi tomada por aventureiros em  busca desenfreada de ouro ou prata, até que as autoridades limitaram o acesso à região na tentativa de bloquear o contrabando das Minas Gerais, e também por isso essas terras permaneceram

TERRA   IGNOTA    

até hoje.

    Os largos braços do velho Chico são os maiores postos de escambo de mercadoria entre as populações ribeirinhas. Paragens inóspitas de gente de múltiplas feições derivadas da mistura de índios tapuias fugidos dos portugueses e dos tupinambás e aimorés, além de cariris, que já por aqui viviam, e de negros fugidos da escravidão junto do litoral.

    Gente aporrinhada toda a vida e cujo único conforto está no além. A fé É a realização da fantasia de uma era sem dor, carência, e onde todos os que se salvarem serão iguais.

    Conselheiro, diz um velho matuto de Bendengó que dele só sabe o que ouviu contá dos mais velhos,

Era igual que Assembléia de Deus, Deus é Amor. Essas cresceram e agora está difícil acabar com essa... essa... como se diz?... religião. No meu pensamento ele era igualmente que um crente hoje. Há cem anos não existia crente.

 

   Pessoas e plantas da caatinga nordestina são gêmeos na secura.

 Pouco ou nada mudou desde um dos episódios mais controvertidos da história brasileira – a guerra de Canudos. São as mesmas feições, a mesma carência de recursos, a eterna ausência do poder público a não ser através de seus clássicos intermediários , coronéis ontem, chame-se-lhes-o-que-se-quiser hoje. Um século depois os sertanejos continuam analfabetos, morando em casebres que se fundem na paisagem – barro cru sobre barro seco, feições às vezes cadavéricas, desgrenhados e empoeirados. Só mudou mesmo a indumentária do vaqueiro. Antes protetores de couro e sandálias ou alpargatas, hoje jeans e tênis de marcas falsificadas. Ainda tem onça e cascavel e tudo quanto é cobra nos mato das roça, como falam os roceiro no seu português discordante como as melopéias de goma arábica que desfiam.

 Comem farinha seca – farinha de mandioca mal moída que quando se mastiga parece feita de pedrinhas: de terra seca.

- Mas como se mastiga isso?

     - A gente aqui não mastiga não, moço. Engole  direto.

    A farinha seca acompanha o peixe frito. Seco.  Torrado. Parece que sertanejo não conhece a arte da fritura.

    Sua dieta alimentar ainda se baseia em caça – pássaros, tatus, cobras e calangos – e pesca, em animais de criação e nos frutos de sua parca agricultura de subsistência, ou “importados”. Come-se também muita carne de sol, arroz, feijão, beiju de tapioca, cuscuz de milho e rapadura – o açúcar mascavo da parte inferior do pão de açúcar que se dava aos escravos nos tempos coloniaes.

    Os nomes de cidades ou assentamentos nas barrancas ou ilhas do Velho Chico, nesse outro território de conquista, como o foram os EUA, mas que permaneceu desértico, reportam-se diretamente à paisagem ou aos meios de subsistência do seu povo - como destaca Euclides da Cunha, de origem eminentemente tapuia. Não se chamam New Venice, New Amsterdam ou Paris, mas Xique-Xique, Angico, Ibotirama, Saco de Bois.

 

   O insulamento a que o sertão está votado há séculos, as secas cíclicas e a falta de visão do povo e de vontade política dos governantes o tornam extremamente dependente das capitais dos estados e das outras, a que acorrem quando a seca é mais prolongada, quando não se resignam a ficar apesar dos pesares e ir para alguma frente de trabalho de emergência que ainda possa ser criada, de governos em governos viciados na recessão e sem nenhuma capacidade de iniciativa. Ou vontade política de tomar a iniciativa para projetos estruturais que ponham termo à indústria da seca, com que também as oligarquias políticas, novas & velhas, beneficiam quiçá arrebanhando com cestas básicas o muito apropriadamente chamado voto de cabresto.

                                                                                                                                            

        Fora o mercado de víveres e o feirão, o sertão ainda vive praticamente isolado do resto do mundo e de si mesmo, os meios de circulação se reduzindo a estradas de terra batida e às balsas do São Francisco.

39 – Cidade mais próxima, Irecê: O Globo, 1989: até hoje não se irrigou a região de Irecê, na Bahia: quando chove lá o preço do feijão baixa no Brasil inteiro. Irecê, capital do feijão, mas só o podem plantar uma vez por ano na época das chuvas (entre novembro e dezembro) se a região não estiver seca – o feijão cresce em 75 a 90 dias, mas depende das chuvas durante a semeadura e quando a vagem está em flor: plantio não irrigado, uma loteria.  

   Petrolina-Pernambuco, Juazeiro-Bahia, nas  margens norte e sul do Velho Chico – adubados por empréstimos a juros subsidiados da Sudene e do Banco do Nordeste, construtores de impérios sertanejos como em Petrolina a família Coelho, de Nilo, associaram-se a indústrias do Sul e multinacionais para fabricarem oásis israelense provando que com irrigação se produz o milagre – haja vontade: duas safras anuais mesmo de frutas de regiões temperadas. 

 

Ninguém sabe a que partido pertencem os seus capi. A cidade tem dois hospitais, ou policlínicas. Um deles foi mandado construir pelo dr. Reinaldo. Ali quem não é do seu grupo arrisca-se a nem ser atendido. Mas se alguém de uma família que vota nele precisa de fazer exames terá carta de recomendação e viatura do município para ir a Salvador. No sertão da Bahia há apenas um dentista para 200 mil habitantes.

Troque-se saúva por jiquitaia, formiga obreira de picada ferina como de abelha: Muita jiquitaia e pouca saúde, assim é o Brasil.

 

E a reação do sertanejo é de irritante complacência quando picado por jiquitaia ou com o clientelismo e o assistencialismo vigentes no sertão, onde nasce e morre no servilismo inconsciente detectado por Euclides da Cunha no século XIX.

Tudo recende a resignação e apaziguamento numa sociedade em que a antena parabólica é o sonho máximo de consumo e se confunde na paisagem seca com a copa verde-clara da jurema.

O sertão continua fora do mundo. Não há um jornal à venda na cidade, cuja primeira estação de rádio – do grupo do dr. Reinaldo – entrou no ar em 1992.

 

 

BANDOLEIRISMO E BANDITISMO POLÍTICO NAS TERRAS DO RIO S. FRANCISCO

na visão histórica de Euclides da Cunha em A Luta de Os Sertões

[165]                      A LUTA  

[167]                                              I

                              PRELIMINARES

de Anhanguera, o Daniel Boone das matas sul-americanas, às minas auríferas e diamantíferas e ao bangue-bangue no faroeste brasileiro, que Euclides da Cunha desbrava

     Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Brito Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.

                                  ANTECEDENTES 

(...)

     Opulentada de esplêndidas minas, (...) Procuram-na há duzentos anos irrequietos aventureiros ferroados pelo anelo de espantosas riquezas. (...) fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras; legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.

(...) conservaram, na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. (...) o banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.

     O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.

[168] (...) os mamalucos bravios e diligentes (...) começo do século XVIII, quando se desvendaram as lavras do Rio das Contas à Jacobina, perigosos agentes que, se lhes não derrancaram o caráter varonil, o nortearam a lamentáveis destinos. (...)

     Devassaram-nas até nova barreira, o rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhes antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale do rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina, em carta dirigida à rainha D. Maria II (1794), afirmava "que as suas minas eram a coisa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade." (...)

(...) os montões de argila revolvida das catas enterroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. (...) Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranquila dos campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irriquieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.

     Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.

(...)

[169] dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projéteis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galeria argentífera do Assuruá... 

(* Vide Descrições Práticas da Província da Bahia pelo tenente-coronel Durval Vieira de Aguiar) (...)

(** Caetano Pinto de Miranda Montenegro, vindo em 1804 de Cuiabá ao Recife, andando seiscentas e setenta léguas, passou pela Barra do Rio Grande, e no relatório que enviou ao visconde de Anadia, diz, referindo-se àqueles lugares, que "em nenhuma parte dos domínios portugueses a vida dos homens tem menos segurança" (Liv. 16. Corr. da Corte, 1804-1808)) E, embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que esboçamos.

(...) Januária (...)  Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xique-Xique, lendária nas campanhas eleitorais do império.

(...)

     Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, (...)

[170] e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça - tornaram-no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiaz.

     Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, (...) um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.

(...) entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. (...)

(...) Xique-Xique, onde durante decênios se degladiaram liberais e conservadores; Macaubas, Monte-Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam nas vivendas destruídas ou esburacadas à bala, esse velho regímen de desmandos.

     São lugares em que se normalizou a desordem esteiada no banditismo disciplinado.

     O conceito é paradoxal, mas exato.

   O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO

                                 

 

                             

(...)

[171] 

     Cerca de dez ou oito léguas de Xique-Xique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, ereto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais. 

(...) É uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamenta com os criminosos, balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.

(...)

     Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco e desbordando para o norte.

     Porque o cangaceiro (*)

(* Derivado de cangaço, complexo de armas que trazem os malfeitores. "O assassino foi à feira debaixo do seu cangaço, dizem os habitantes do sertão." Franklin Távora, O Cabeleira

da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico com diverso nome. Distingue-o do jagunço, talvez, a nulíssima variante da arma predileta, a parnaíba de lâmina rígida e longa suplanta a fama tradicional do clavinote de boca de sino. As duas sociedades irmãs tiveram no entretanto longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.

     A insurreição da comarca de Monte-Santo ia ligá-las.

     A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças, desvairadas, perdidas nos sertões.

   

Coronelismo ontem e hoje.

Formação político-territorial do sertão tal como é contada pelos  porta-vozes dos seus “benfeitores”. Exemplos. Xique-Xique e adjacências: Central-Roça Dentro até Barra, maior cidade do Alto Sertão baiano.

 

   No início do século 20 as serras azuis que emolduram Tiririca viviam fervilhando de homens forasteiros de todos os tipos e origens em busca do látex de uma planta nativa – a maniçoba, da família das euforbiácias - que era exportada para os EUA e Europa, onde era transformada em borracha.

Cazuzão era lavrador e comerciante no Distrito de Tiririca. Fora também tropeiro viajando por todas as partes com seus lotes de burros carregados de mercadorias.

Dirigia-se às Lavras Diamantinas com suas tropas de burros viajando por todas as partes levando peixes secos, rapaduras, cachaças, fumo de corda, e retornava com suas cargas de café e de outras mercadorias encontradas ali.

Começou a carreira política com convite do governador baiano Luís Viana Filho de ingressar na UDN em 1943.

Cazuzão foi um valente. Conta-se que quando, eleito prefeito, nos anos 1950 decidiu criar a primeira escola secundária da cidade deparou-se com forte oposição da parte de caciques políticos e famílias importantes, temerosos que ela mudasse a estrutura social da cidade. Dando-se acesso ao ensino a jovens de classes inferiores ficariam sem empregados e subalternos, na vida sócio-econômica como na política.

Só os mais ricos deveriam estudar, deslocando-se a cidades vizinhas ou à capital, Salvador. Os pobres, negros e serviçais domésticos teriam de continuar onde estavam.

 

Teve um médico que chegou a prefeito depois de meia vida distribuindo caridades por esse vasto sertão semiárido. Devido a suas excursões profissionais por várias localidades, levando prevenção e socorro médico a domicílio, as pessoas passaram a chamá-lo de ‘Pai dos Pobres’.

Ação de maior destaque no seu currículo de governante: providenciar carros-pipa e ajuda financeira do interventor federal para a realização de várias pequenas obras a fim de empregar mão-de-obra em frentes de trabalho e evitar a emigração em massa de famílias sofrendo os efeitos de longa estiagem. Da intervenção federal a partir do Rio de Janeiro ao voto de cabresto terá corrido muita água.

 

Um tal e coisa, em pleno fervilhar dos garimpos de Gentio do Ouro e de Guigós, foi minerador. Mas só quando se pôs a viajar em lombo de burro e até em vagarosos e cansativos carros de boi por povoados da Zona da Caatinga e povoados marginais das barrancas e ilhas do Rio São Francisco é que conseguiu juntar uns caraminguás e foi morar em Petrolina, tornando-se anos depois advogado do Grupo Coelho, há décadas a mais importante família da cidade fronteiriça de Pernambuco, cujo maior expoente foi o governador Nilo Coelho, que lhe serviu de rampa para o posto mais alto da hierarquia xique-xiquense.

 

Eufrosina Camandaroba mulher-macho-sim-senhor.

De família importante – ilustre família - de Barra e por ser filha de quem era por dá-cá-aquela-palha vivia de salamaleques com o coronel-prefeito, fosse no belo sobrado do coronel ou por epístola:

Ainda aqui, na sede, o senhor mandou cercar toda a sede municipal, impedindo assim que os animais domésticos tais como porcos, jumentos, bodes, ovelhas, etc. ficassem circulando livremente entre as ruas e avenidas da cidade.

Frise-se que o sr. foi o primeiro prefeito eleito democraticamente pelo povo de Xique-Xique. Todos os antecessores, desde 1834, foram nomeados!

 

Flashes de cor local.

Palha

ou

Sépia

e

branco                                  

estourado.    

                                                                                                                      

        A terra. As plantas. O homem.

        Deserto de grez.

Silêncio áspero ou como em Graciliano: laconismo exato.

Euclides: sossego agoniado da caatinga  ossadas  mandacarus  xiquexiques  gravetos  mato baixo, cinzento, esturricado.

Os Sertões caatinga, termo ameríndio - mata branca:

Árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se fluxuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, de flora agonizante.

Sol escaldante que evapora as esperanças de milhares de famílias sertanejas e a mesma terra desidratada.  

 

(...) Morros enterroados, formas evanescentes de montanhas roídas pelos aguaceiros fortes e repentinos, tendo às ilhargas, à mostra, a romper, a ossatura íntima da terra repontando em apófises rígidas, ou desarticulando-se em blocos amontoados, em que há traços violentos de cataclismos; plainos desnudos e chatos feito llanos desmedidos; e, por toda a parte, mal reagindo à atrofia no fundo das baixadas úmidas, uma vegetação agonizante e raquítica, esgalhada num baralhamento de ramos retorcidos - reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas...

     Choupanas paupérrimas, portas abertas para o caminho, surgiam em vários trechos, ainda não descolmadas, mas vazias, porque as deixara o vaqueiro que a guerra espavorira ou o fanático que endireitara para Canudos.

(...)

[366] 

(...)

     Não raro, alguns bois - rebutalhos de manadas grandes tresmalhadas pelo alvoroço da guerra - ao lobrigarem, de longe, a azáfama que movimentava de novo a paragem a que se haviam aquerenciado, o rancho tranquilo onde tinham sofrido a primeira ferra, para lá abalavam velozmente. Vinham urrando, numa alegria ruidosa e forte. Buscavam o vaqueiro amigo que os campeara outrora e iria, de novo, ao som das cantigas conhecidas ou ao toar tristonho do aboiado, levá-los às soltas prediletas, aos logradouros fartos e às aguadas frescas.

     Irrompiam, troteando, no terreiro...

    E tinham recepção cruel. (...)

    Gilberto Freyre discorreu sobre o alto  contraste entre o litoral - onde nunca deixa de haver uma mancha de água: um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa – e os sertões de areia seca, rangendo debaixo dos pés; paisagens duras doendo nos olhos; das figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco.

31 - sertão – secas, romarias, retirantes, opressão econômica, manancial de mitos, terra seca, pedras calcinadas pelo sol, água escassa, vegetação rala, a loucura da pobreza do Nordeste – visão alucinada lucinante de conflitos humanos, sentido dramático da vida – Glauber: Vitória da Conquista.

Existem duas estações na econômica composição sertaneja - a seca e a seca verde. A primeira castiga o nordestino (...) com falta de água e comida. É quando a caatinga retoma sua condição natural de trama seca sobre um solo rachado (...) 

É também durante a seca que acontece a maior parte das concorridas festas sabor sacro das cidades, além das intermináveis romarias.

Para quem gosta de movimento outubro é o mês recomendado. Boa parte da comunidade beata do Nordeste desloca-se para Monte Santo, em busca de graças nas 25 capelas do Santuário de Santa Cruz.

 

[103] Transpõem o S. Francisco; mergulham nos gerais enormes do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele e do Tocantins em alagados de onde partem os rios (...) Com os escassos recursos das próprias observações 

dA SECA

e das dos 

[104] seus maiores, em que os ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar.

(...)

     Por fim, não impressionavam. Quem se aventura nos estios quentes à travessia dos sertões do norte, afeiçoa-se a quadros singulares. A terra, despindo-se de toda a umidade - numa intercadência de dias adustivos e noites quase frias - ao derivar para o ciclo das secas parece cair em vida latente, imobilizando apenas, sem os descompor, os seres que sobre elas vivem. Realiza, em alta escala, o fato fisiológico de uma existência virtual, imperceptível e surda - energias encadeadas, adormecidas apenas, prestes a rebentarem todas, de chofre, à volta das condições exteriores favoráveis, originando ressurreições improvisas e surpreendedoras. E como as árvores recrestadas e nuas que, à vinda das primeiras chuvas, se cobrem, exuberando seiva, de flores, sem esperar pelas folhas, transmudando em poucos dias aqueles desertos em prados - as aves que tombam mortas dos ares estagnados, a fauna resistente da caatinga que se aniquila, e o homem que sucumbe à insolação fulminante, parecem, jazendo largo tempo intactos, sem que os vermes lhes alterem os tecidos, esperar também pela volta das quadras benfazejas. Por ali ficam, patenteando, por vezes, singulares aparências de vida: as sussuaranas - que não puderam vingar, demandando outras paragens, o círculo incandescente das secas - contorcidas, garras fincadas no chão, como em saltos paralisados; e, - à beira das cacimbas extintas - o pescoço alongado, procurando um líquido que não existe, os magros bois, mortos há três meses

[368] ou mais, caídos sobre as pernas ressequidas, agrupando-se em manadas imóveis. 

agrupando-se em manadas imóveis

                                                                                                                                                         de uma foto de Marilena Felinto

            

Durante a seca verde, no primeiro semestre do ano, o sertão transforma-se num paraíso. (...) A caatinga sucumbe ao emergente matiz verde das plantas, os caldeirões (depressões naturais em placas de quartzito) enchem de água e o que for semeado dá - desesperadamente.

Ao sobrevir das chuvas a terra transfigura-se... os vales secos fazem-se rios... E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.

    como descreveu Euclides da Cunha em Os Sertões

em cenário de inferno em vida de que os crendeiros de Canudos almejam escapar

[39] Compreende-se então a verdade da frase paradoxal de Auguste Saint-Hilaire: "Há ali toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!" 

nuvens carregadas prenunciando enfim um aguaceiro parecem estar 

sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta

e como que por milagre quando o aguaceiro passa a natureza

 É uma mutação de apoteose.

                À luz crua dos dias sertanejos

     Sol cruel que acentua

     a brancura seca da  paisagem.

 Imagens impactantes da miséria nordestina.

9 – macambira planta xerófita da mesma espécie do abacaxi; sisal.  

mandacarus: Euclides da Cunha em despacho de Uauá de 04-09-1897 para o jornal A Província de São Paulo: Mandacarus esguios elevantam-se silentes e rígidos como imensos candelabros implantados no solo, segundo a bela comparação de Humboldt (tristes vegetaes que são uma obsessão quasi para o viajante).

35 – macambira - espécie de bromélia da região com espinhos retorcidos como anzóis.

    Umbuzeiro – da raiz se faz farinha que produz o saboroso umbu.  

          Xique-Xique – armazena água no interior e o miolo, amargo, engana a fome.

Rio Grande do Norte – seca, ataques de marimbondo, pé-de-caboclo, pragas de pulga-de-pé, falta de trabalho. Somos os homens mais pobres do Brasil. Terremoto é coisa de país rico, não é?

                                                      A FLORA AMIGA  

 

     Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos joazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozianha-os fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres, empazinando o faminto; atesta os giraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que leh dessedentam os filhos, reservando para si o fumo adstringente dos cladódios do "chique-chique", que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe 

     À noite, a sussuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre. 

[107] Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talhos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras. (...) 

     E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos joás...

bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas. (...) Passa, certo dia, à sua porta, a primeira turma de "retirantes". (...) É o sertão que se esvazia.

[186]

(...)

     O umbú desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, o ouricuri virente, a marí elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarús talhados a facão, ou as folhas dos juás - sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caruás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no 

{187] escuro apenas lobriga fosforescência azulada das cunanans dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as sussuaranas deslumbradas, um archote fulgurante...

(...) mangabeiras, único vegetal que ali medra sem decair, graças ao látex protetor que lhe permite, depois das soalheiras e das queimadas, cobrir de folhas e de flores os troncos carbonizados, à volta das estações propícias.além dos trabalhos de sapa, abrir mais de uma légua de picada contínua através de uma caatinga feroz

* Ju-etê - espinho grande - por extensão: espinheiral, grande espinheiro

[296] *Tenente-coronel Sequeira de Meneses. Artigos publicados no País, com o pseudônimo Hoche 

como num tratado de botânica

     "Ao Chique-chique, Palmatória, Rabo de Raposa, Mandacarús, Croás, Cabeça de Frade, Culumbi, Cansanção, Favela, Quixaba e a respeitabilíssima Macambira, reuniu-se o muito falado e temido cunanan, espécie de cipó com aspecto arborescente, imitando no todo a uma planta cultivada nos jardins, cujas folhas são cilíndricas. A poucos centímetros do chão o tronco divide-se em muitos galhos, que se multiplicam numa profusão admirável, formando uma grande copa, que se mantém no espaço por seus próprios esforços ou favorecido por algumas plantas que vegetam de permeio. Estende suas francas folhas cilíndricas com oito caneluras e igual número de filetes em gume e pouco salientes, semelhando-se a um enorme polvo de milhões de antenas, como elas flexíveis e elásticas, cobrindo, não raras vezes, considerável superfície do solo, emaranhando-se, por entre a esquisita e raquítica vegetação destas paragens, e uma trama impenetrável. A foice mais afiada dos nossos soldados do contingente de engenharia (chineses, na frase gaiata dos companheiros dos corpos combatentes) e polícia, dificilmente as decepava nos primeiros golpes, oferecendo, portanto, resistência inesperada ao empenho que todos traziam em ir por diante. (...)

(...)

     A natureza toda protege o sertanejo. (...)

 

 O homem do sertão guarda economia nas  palavras e nos gestos e até mesmo nos sentimentos se parece com as árvores ressecadas e cheias de espinhos. A terra, a flora e a fauna formam o homem – esse cenário de tragédia e solidão, completam-se e são inseparáveis.

            E o que é ruim piora.

        Ex-integrante de volantes que combatiam Lampião em 1992:

    Antigamente aqui tinha ema, veado, tatu, mas hoje, depois de tanta seca, não se vê mais nada disso. O povo está indo embora. A terra não dá mais nada. Até mesmo a macambira, o xique-xique e o mandacaru estão escassos.

 Invasor de cidade cearense de Penaforte, a 500 km de Fortaleza, em busca de comida:

 Aqui no Nordeste não tem mais o que cumê. Acabou-se rato, acabou-se preá e só resta casca de umbu cozinhada com água e sal para dar de comer aos meus oito filhos, que há mais de um mês não comem nem farinha.

 

 

Trinta e oito graus de dia. Dezesseis à noite. Muita caatinga e exuberância da fauna local - principalmente urubus, lagartos e bodes.

Com a exceção de Alagoinhas, que possui sucursais dos principais jornais baianos, não há outra fonte de informações que possa ser invocada no sertão [além da televisão].

O cinema mais próximo fica em Salvador.

[Uauá] a única dentista para as quase 200 mil bocas de de seis cidades do sertão de Canudos.

  Nordestinos continuam peregrinando para as capitais dos estados ou para o sul em busca de melhores condições de vida, engrossando as populações também flageladas das periferias dos maiores centros habitacionais.

Quinta essência do ideário armorial de Ariano Suassuna, os retirantes espalhados pelos quatro cantos construíram o emaranhado de cidades periféricas que reconstituem os burgos num país que tem que passar pela Idade Média que não teve. No Rio de Janeiro, por exemplo, ao contrário da Europa há milênios, muitos dos redutos famélicos estão nos pontos mais elevados, mas é sobretudo nas baixadas periféricas que eles se fixaram aos milhões.

Em épocas de maior crise voltam para o sertão. Há muito tido entre os racistas do sul como a escumalha da civilização brasileira – embora os antropólogos o considerem a síntese da raça gerada pela mistura de três povos – o sertanejo nordestino é também, como se não faltasse mais nada, vítima de preconceito e segregacionismo – também por conta do seu baixíssimo nível de instrução.

Dois dos cinco milhões de famílias brasileiras não proprietárias de terras encontram-se no Nordeste. Centenas de milhar continuam lutando às vezes até a morte pela posse de propriedades improdutivas como no tempo do ativismo das Ligas Camponesas do Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, em Pernambuco, às vésperas do golpe militar de 1964, feito para acabar de vez com todo tipo de sonho.

Foi o que aconteceu em abril de 1996, quando 19 camponeses sem terra foram chacinados num confronto com 150 soldados da Polícia Militar, no Pará.

    Sociólogos fazem ligação direta num pulo de cem anos da vasta comunidade reunida em três anos ao redor das promessas messiânicas de Antônio Conselheiro com os atuais acampamentos do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST. Um deles escreveu que o movimento gerado pelo Conselheiro era tão religioso quanto o dos sem-terra acampados ao lado das estradas brasileiras, onde sempre se vê uma cruz e se faz orações diárias.

Uma visão propagada até em telenovela.

Deus e o Diabo.

    Todo arame e porteira merece fogo e fogueira é maldição  

 Dá-me um chão  

 problema é a cerca.

   

 

                                 

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